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Este BLOG tem por objetivo apresentar, discutir e fomentar novas possibilidades para o ensino de literatura.





segunda-feira, 26 de abril de 2010

O niilismo e a desilusão em Tabacaria de Álvaro de Campos

por Fabiano Fernandes Garcez



Nesse último 13 de junho comemorou-se o aniversário de nascimento de Fernando Pessoa, um dos nomes mais importantes da literatura portuguesa e mundial.
Sua obra que permaneceu maioritariamente inédita foi difundida e valorizada pelo grupo da Presença, após sua morte, a partir de 1943, Luís de Montalvor deu início à edição das obras completas de Fernando Pessoa, abrangendo os textos em poesia dos heterônimos e de Pessoa ortônimo, ou ele mesmo.
Os heterônimos são concebidos como individualidades distintas da do autor, este criou-lhes uma biografia e até um horóscopo próprios. Encontram-se ligados a alguns dos problemas centrais da sua obra: a unidade ou a pluralidade do eu, a sinceridade, a noção de realidade e a estranheza da existência. Traduzem, por assim dizer, a consciência da fragmentação do eu, reduzindo o eu «real» de Pessoa a um papel que não é maior que o de qualquer um dos seus heterônimos na existência literária do poeta. Assim cada heterônimo significava um novo autor com visão de mundo e características diferentes entre si, principalmente, na poesia temos três: Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos.
Tabacaria, talvez, seja a poesia mais significativa de Álvaro de Campos, nela podemos encontrar muitas das características presentes na obra desse heterônimo de Fernando Pessoa. No poema é predominante o niilismo, o sentimento de revolta, o inconformismo, a desumanização, também, um deprimente vazio, bem ao gosto de Shopenhauer, e a desilusão própria dos tempos pós-guerra e certo desleixo do português, como o próprio Pessoa afirmou em apontamentos.
O texto é um poema moderno, caracterizado assim pelos versos livres, versos que Ricardo Reis, outro heterônimo de Pessoa, em um apontamento no livro `O Eu profundo e outros eus` faz as seguintes considerações:
``O que verdadeiramente Campos faz, quando escreve em verso, é escrever prosa ritmada cm pausas maiores marcadas em certos pontos, para fins rítmicos, e esses pontos determina-os ele pelos fins dos versos. Campos é um grande prosador, com uma grande ciência é o ritmo da prosa, e a prosa de que se serve é aquela em que se introduziu, além dos vulgares sinais de pontuação, um pausa maior e especial, que Campos, como os seus pares anteriores e semelhantes, determinou representar graficamente pela linha quebrada no fim, pela linha disposta como o que se chama um verso.``
Nos primeiros versos (Não sou nada/Nunca serei nada./Não posso querer ser nada), já se percebe a descrença presente em relação a si mesmo e ao longo do poema em relação a tudo. O Eu-poético sabe que só o que possui são sonhos. ( ... tenho em mim todos os sonhos do mundo.).
Sozinho no quarto o Eu-poético contempla a rua, motra-se uma oposição entre dentro (o quarto), subjetivo, a sua reflexão, e a rua (fora) a realidade objetiva, e percebe que lá há um mistério que ninguém vê (Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,/ Para uma rua inacessível a todos os pensamentos) apenas ele percebe, pois possui uma capacidade imaginativa muito grande (Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres) faz referência a morte como um desses mistérios citados no verso: (Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,) Outra atítese que se repete ao longo do poema é o tudo/nada (Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada).
O Eu-poético está refletindo e isso o deprime (Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade) e a falta do sonho, a lucidez, também o deixa deprimido e negativo (Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,)
A perplexidade de quem pensa, reflete, chega a conclusões, mas não as coloca em prática (Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu), assim se vê divido, a oposição entre a subjetividade (dentro) e a realidade (fora) na estrofe seguinte retorna ao texto (À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,/ E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.)
Tudo que aprendeu ele procura esquecer, pois não lhe foram úteis (Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada./A aprendizagem que me deram), e recorre a natureza em busca de um sentido — talvez influenciado por Alberto Caeiro, seu mestre —, (Desci dela pela janela das traseiras da casa,/ Fui até o campo com grandes propósitos), mas essa busca é em vão, também no campo não vê sentido, para ele essa `vida natural´ é inútil, pois o Eu-poético é um homem da cidade, lúcido, angustiado e não inocente (Mas lá encontrei só ervas e árvores,/ E quando havia gente era igual à outra), então o Eu-poético volta a reflexão (Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?)
No verso seguinte o Eu-poético pensando sobre si retorna a oposição do sonho (desejo) e realidade reflexiva (Que sei eu de que serei, eu que não sei o que sou?/ Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa), o Eu-poético opõe a capacidade de sonhar a limitação do mundo real (E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!/(...) Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,/ E a história não marcará, quem sabe?, nem um,) o niilismo, a negatividade, volta, agora em relação ao futuro (Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.) novamente a antítese sonho/realidade aparece no poema, onde ele se compara a doidos, sonhadores, malucos, que tem conclusões a cerca de muitas coisas (Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!/ Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?).
Depois o Eu-poético percebe que os sonhos nada valem (Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas/ Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas, E quem sabe se realizáveis,) pois são limitados pelo mundo externo e real (Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?), pois o mundo não é para aqueles que apenas sonham, mas para aqueles que lutam (O mundo é para quem nasce para o conquistar/ E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão), assim apesar de ter conquistado mais que Napoleão, amado mais que Cristo e filosofado mais que Kant, nada lhe adiantou pois tudo foi feito na imaginação (sonho) e não na realidade (Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez./ Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,/ Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.), este verso marca novamente a impotência perante a realidade (Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,/ Ainda que não more nela) os versos seguintes estão no pretérito marcando novamente o niilismo o Eu-poético que esperou sem sucesso e nada conseguiu, agora já não pode crer nele nem em nada (Serei sempre o que não nasceu para isso;/ Serei sempre só o que tinha qualidades;/ Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta/ E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira, / E ouviu a voz de Deus num poço tapado. / Crer em mim? Não, nem em nada.) com isso a realidade objetiva pesa sobre seu ser inflamado de sonho (Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente/ o seu sol a sua chuva, o vento que me acha o cabelo) o Eu-poético se vê desiludido (E o resto que venha, ou tiver que vir, ou não venha.), os versos seguintes são marcados pela incapacidade do Eu-poético perante o mundo real e externo que o torna marginalizado nesse mundo sem emoções e opaco: (Escravos cardíacos das estrelas,/ Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama; / Mas acordámos e ele é opaco, / Levantámo-nos e ele é alheio,/ Saímos de casa e ele é a terra inteira,/ Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.)
A passagem mais bela do poema, talvez, é quando o Eu-poético inveja a inocência de uma criança que come chocolates, pois ele pensa, reflete muito e isso lhe é doloroso, é angustiante e traz infelicidade (Come chocolates, pequena; /Come chocolates!/ Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates). Mas essa inveja que lhe causou um desejo de trocar de lugar com a menina logo dessipa-se, pois ao se colocar no lugar da criança, apenas com o ato de tirar a lâmina de papel de prata a realidade lhe vem a tona e percebe que o papel não é de prata, mas de estanho, acabando com o sonho de ser feliz e inocente como a menina, ou seja, jogando tudo fora o papel e os sonhos (Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!/ Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folhas de estanho,/ Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)
Nos versos seguintes o Eu-poético exibea novamente sua apatia, seu vazio interior, a negatividade e o niilismo em relação a si e ao futuro, pois o sonho foi vencido pela realidade (Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei/ A caligrafia rápida destes versos,/ Pórtico partido para o Impossível./ Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,/ Nobre ao menos no gesto largo com que atiro/ A roupa suja que sou, sem rol, pra o decurso das coisas,) com isso ele recorre a figuras femininas inexistentes, pois o sonho alivia seu sofrimento (Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas,/ Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,/ Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,/ Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,/ Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,/ Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,) procura também algo na modernidade, sem saber o que procura, que lhe ajude na inspiração (Ou não sei quê moderno – não concebo bem o quê-,/ Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!), mas tudo é em vão, pois o vazio interno e a falta de esperança continua (Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco/ A mim mesmo e não encontro nada,).
O Eu-poético volta a observação do real (Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta./ Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,) nesse momento o Eu-poético se desumaniza, se difere das pessoas (Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,) a realidade impenetrável lhe deixa alheio, marginal ao mundo, novamente, (E tudo isso me pesa como uma condenação ao degredo,/ E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)
A desilusão e o desejo de troca de lugar com outra pessoa voltam ao texto (Vivi, estudei, amei, e até cri,/ E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.) voltam também a antítese de tudo/nada e a identificação que no mundo não se deve sonhar apenas (Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso).
O Eu-poético constata sua falha, nos versos seguintes, (Fiz de mim o que não soube,/E o podia de mim não o fiz./ O dominó que vesti era errado) e a perda da identidade pois ela não era real, era imaginada (Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me./Quando quis tirar a máscara/ Estava pegada à cara), vivendo sob uma personalidade irreal, ele perdeu tempo (Quando a tirei e me vi ao espelho,/ Já tinha envelhecido.) sem personalidade não pode fazer parte do mundo, neste momento a palavra ´máscara´, até então, usada como metáfora para personalidade, agora passa a contextualizar a metáfora do mundo como um teatro, sem fazer parte do mundo ele não pode subir ao palco, devendo ficar a margem (Deitei fora a máscara e dormi no vestiário).
Mas o Eu-poético após constatar suas falhas, percebe-se sem personalidade, vê uma hipótese de redenção na escrita, ele encontra utilidade em toda sua reflexão, assim com a escrita ele pode provar, a si mesmo, que é um ser elevado (E vou escrever esta história para provar que sou sublime.), mas ao olhar a Tabacaria, representação da realidade, essa euforia logo passa, voltando o niilismo, a apatia, a desilusão e o sentimento de exclusão (Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse,/ E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,/ Calcando ao pés a consciência de estar existindo,/ Como um tapete em que um bêbado tropeça/ Ou um capacho que os ciganos roubaram e não vale nada,).
Ao olhar o dono da Tabacaria que representa o homem comum sente-se desconfortávelm (Mas o dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta./ Olhou-o com o desconforto da cabeça mal voltada/ E com o desconforto da alma mal-entendendo.) depois gradativamente volta o sentimento de inutilidade da Tabacaria, de seus versos, do mundo e de tudo, é significativa o modo que aparece essa gradação, é como se a inutilidade das vidas do Eu-poético e do dono da tabacaria atingisse a rua, o país, o planeta até atingir todo o universo (Ele morrerá e eu morrerei./ Ele deixará a tabuleta, e eu deixarei versos./ A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também./ Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,/ E a língua em que foram escritos os versos./ Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu./ Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente/ Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,/ Sempre uma coisa defronte da outra,/ Sempre uma coisa tão inútil como a outra,).
O anticlímax dá-se nos versos seguintes com a visão de um homem que entra na Tabacaria, provavelmente um cliente, a realidade volta ao Eu-poético (Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?),/ E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.), depois o Eu-poético é tomado por uma euforia e vai tentar escrever (Semiergo-me enérgico, convencido, humano,/ E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.), após essa euforia passageira o Eu-poético se refugia na evasão, sem pensar, sem refletir, para apenas saborear o cigarro (Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los/ E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos./(...) E continuo fumando./ Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.)
Com o fim do momento evasivo e de solidão o Eu-poético volta a refletir, mas agora emotivamente, cogitando a felicidade na vida simples (Se eu casasse com a filha da minha lavadeira/ Talvez fosse feliz.) O cliente sai da tabacaria o Eu-poético o reconhece, é um homem comum, sem muitas inquietações e reflexões (O homem saiu da tabacaria (..)/ Ah, conheço-o: é o Esteves sem metafísica.) o poema chega ao fim quando o Eu-poético interage, se comunica, com o homem — chamado Esteves —, nome interessante e que combina com o sentimento de todo o poema, pois se trata do verbo estar no pretérito acompanhado do sintagma ‘sem metafísica’, trazendo uma ambiguidade simbólica a esse homem comum: esteves sem metafísca, fazendo assim a aproximação do subjetivo (Eu-poético) e objetivo (homem e o dono da Tabacaria),
Nos últimos versos (Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me./ Acenou-me adeus gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo/ Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.) o Eu-póetico volta-se desiludido e sem esperança para a realidade, enquanto o dono da Tabacaria alheio a tudo apenas sorri.


BIBLIOGRAFIA


Pessoa, Fernando . O eu profundo e os outros eus. 16º Edição, Nova Fronteira

Pais, Amélia Pinto. Para compreender Fernando Pessoa. Porto, Areal Editores

Coelho, Vânia Cardoso. Apostila de Literatura Portuguesa – Modernismo.

Site: www.geocites.com/Paris/metro/7719

A secura das vidas no sertão nordestino: Uma análise sobre Vidas Secas

por Fabiano Fernandes Garcez


INTRODUÇÃO

Com a farsa constitucional da ditadura de Vargas, a desestruturação do mundo devido ao crack da bolsa de Nova Iorque e a segunda guerra mundial, a literatura brasileira focou-se na retomada de certas linhas do passado como o simbolismo e a tradição lírica portuguesa sobre tudo na poesia. Valendo-se de uma linguagem seca e crítica, o romance, na segunda fase do modernismo, fincou-se, principalmente, no regionalismo, ficou próximo de um novo realismo, baseado na realidade regional, assim temos autores que passaram a expor a região, o homem e os problemas sociais dos lugares remotos do país.
Com o intuito de conscientizar, o romance regional denunciava o problemas enfrentado pelos proletariados rurais, mostrando sua opressão pelos grandes latifundiários ou produtores, que mantinham seus empregados miseráveis, vivendo quase num estado de escravidão. Por outro lado os romances mostravam que apesar de tudo isso o sertanejo, ou lavrador ainda era um homem forte e baseado nessa força resista e sobrevivia em um ambiente hostil e carente de muitas coisas, inclusive a justiça.
Outra preocupação dos autores era tentar reproduzir o linguajar regional, apresentando um vocabulário próprio de cada região do Brasil, mostrando a riqueza brasileira também na linguagem de seu povo.
Dentro de todos esses conceitos e características da segunda fase modernista se enquadra Vidas Secas de Graciliano Ramos, romance de tensão crítica, retrata a seca do sertão nordestino e o sertanejo, bem como suas dificuldades, descrenças, injustiças, sonhos, esperanças e pequenas alegrias.

1- O AUTOR
Graciliano Ramos nasceu em Quebrângulo, Alagoas, em 27 de outubro de 1892. Lá, passou sua infância e parte da adolescência, repartindo-se, com a família, entre as cidades de Buíque, Viçosa e Palmeira dos Índios. Primeiro dos quinze filhos, Graciliano foi sempre visto pela família como um sujeito difícil, taciturno e introspectivo.
Estudou em Maceió, onde colabora em vários jornais publicando sob pseudônimos. Esteve, por breve período, no Rio de Janeiro, onde, por volta de 1914, trabalhou como revisor e redator nos jornais Correio da Manhã e A Tarde.
Três de seus irmãos morrem de febre bubônica, isso o faz retornar ao Nordeste, para a cidade de Palmeira dos Índios, onde trabalha como comerciante e jornalista, lá casou-se, após a morte da esposa é eleito prefeito da cidade entre os anos de 1928 e 30. Dois anos depois renunciou e casou-se novamente. É dessa época o seu primeiro romance: Caetés de 1933.
De 1930 a 1936 viveu em Maceió, dirigindo a Imprensa e a Instrução do Estado de Alagoas. Em 1934 publica seu segundo romance São Bernardo. De março de 1936 a janeiro de 1937 viveu os mais difíceis dias de sua vida. Acusado de subversivo e comunista, passou dez meses de prisão em prisão, sem saber do que o acusaram, sem sequer ser ouvido em depoimento ou processado. No mês de Agosto do mesmo ano de sua libertação é publicado Angústia.
Desse tempo terrível, nascerá mais tarde Memórias do Cárcere, um relato que soma a angústia de existir, o medo e a inquietação. Muda-se para o Rio de Janeiro. Seus romances, histórias para crianças e artigos passam a ser reconhecidos como o maior legado literário desde Machado de Assis.
Em 1945, filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro e, em 1952, viajou para a Rússia e países comunistas; o que presenciou nessa peregrinação está contido num outro livro: Viagem de 1954. Em 1953, morre no Rio, vítima de câncer.


2- ANÁLISE DA OBRA

2.1 Enredo

A história retrata a o drama social e espiritual da família do vaqueiro Fabiano que foge da seca do Nordeste brasileiro, em busca de uma terra menos inóspita. Após uma longa caminhada, em baixo de um sol escaldante, encontra uma fazenda abandonada e lá se estalam.
Romance cíclico, começa na fuga da seca e termina nela, é composto em treze capítulos, que poderiam ser contos autônomos, tratam a vida do sertanejo nordestino de modo objetivo, transpassando ao leitor o conjunto de miséria física e intelectual, aliada ao sofrimento e falta de perspectiva.
Devido os capítulos serem uma peça independente de um quadro maior fica mais claro uma explanação de cada capítulo:


Capítulo 1 - MUDANÇA:

Mostra a fuga da seca de uma família sertaneja. Compõe essa família: Fabiano, sua esposa Sinha Vitória, os dois filhos do casal caracterizados por menino mais novo e menino mais velho, a cachorra Baleia e um papagaio, que sinha Vitória assa para alimentar a família. As personagens são embrutecidas pela seca tornando-se agressivas e hostis.
Junto com a seca anda sempre a fome, sem ter o que comer a familia se alimenta do papagaio de estimação, então a cachorra aparece com um preá morto, sinha Vitória beija a cadela e lhe lambe o focinho sujo de sangue.




Capítulo 2 - FABIANO:

A família encontra uma fazenda abandonada e nela instalam-se. O dono da aparece e expulsa a família. Fabiano faz de desentendido e se oferece para trabalhar como vaqueiro. O fazendeiro acaba por aceitar .
O capítulo é centrado na análise de Fabiano. Seu vocabulário é reduzido ele gesticula, grunhe, admira seu Tomás da bolandeira, por possuir facilidade em se expressar. Para Fabiano todas as palavras são incompreensíveis.
Fabiano é um homem introspectivo, rústico, sem articulação de uma linguagem, ligado a hereditariedade e a tradição do universo arcaico. Fabiano se vê como um bicho, se orgulha disso.


Capítulo 3 – CADEIA:

Fabiano vai à cidade para comprar mantimentos, toma pinga e acha que o dono da venda põe água em tudo o que vende. É convidado por soldado amarelo a jogar cartas, diz frases desconexas e aceita o convite.
Fabiano acompanha o soldado por não encontrar palavras para rejeitar o convite. Perde o jogo e deixa a bodega furioso e tentando encontrar uma desculpa a dar a mulher pela perda do dinheiro, o soldado que também perdeu, ao tirar satisfações empurra e pisa-lhe no pé, Fabiano, protesta, xingando a mãe do soldado. O vaqueiro é preso e apanha na cadeia.
Ele tenta compreender a situação, mas devido a falta de organização de idéias não consegue. Revolta-se contra a injustiça que sofre, desejando vingança , mas acaba se conformando com seu destino.





Capítulo 4 - SINHA VITÓRIA:

Com o foco na esposa de Fabiano, esse capítulo mostra o seu desejo em adquirir uma cama de couro (como a do seu Tomás da bolandeira ). Ela tenta mas tem muito pouco o que economizar. Sinha Vitória se mostra inconformada com a sua situação, ao contrário do marido que aceita os fatos de forma mais passiva.
Depois de uma discussão com o Fabiano que vai deitar, desconta a raiva na cadela, volta a reclamar com o marido o fato de ter gastado dinheiro com bebida e o jogo. Fabiano critica os sapatos que a mulher usava nas festas e a compara com um papagaio, fato que a deixa muito magoada.


Capítulo 5 - O MENINO MAIS NOVO:

O menino não possui nome, tem admiração pelo pai, apesar de temê-lo. Na tentativa de imitar Fabiano, o menino monta um bode, acaba por cair. O tombo faz o irmão rir, o menino mais novo acha que ele deveria tê-lo prevenido, ou se solidarizado a a sua dor, sentiu a necessidade de crescer e ficar tão grande quanto o pai:


Capítulo 6- O MENINO MAIS VELHO:

O menino se impressiona com a palavra inferno, tenta compreender seu significado, pergunta ao pai, mas não obtém a resposta, vai a cozinha e interroga a mãe, sinha Vitória zanga-se e dá-lhe um cocorete. Sai indignado e se sente injustiçado, busca refúgio na cachorra.
O garoto não sabia falar direito, tem o vocabulário minguado, repe sílabas e imita as vozes dos bichos, quer aprender o significado da palavra para ser admirado e invejado pelo irmão.

Capítulo 7 - INVERNO:

Início do período das chuvas e em uma noite fria a família se reúne em torno do fogo. Fabiano e a mulher tentam conversar, enquanto os filhos querem pegar no sono, mas o casal discursa a base de frase soltas e repetidas, sem ouvir o que o outro diz. Fabiano conta histórias, mas seu discurso é desorganizado enquanto os garotos passam frio de um lado do corpo e calor pelo fogo do outro sem poder dormir.


Capítulo 8 - FESTA:

A família vai à cidade para as comemorações do Natal, vestidos com roupas novas confeccionadas por sinha Terta, Fabiano havia comprado pouco tecido com o medo da senhora roubar retalhos de pano, assim as roupas ficam muito curtas. Com a falta de costume de usar sapatos, Fabiano se sente ridículo, aumentando o seu sentimento de inferioridade.
O vaqueiro se embebeda e faz provocações aos passantes, mas ninguém lhe responde, pois o barulho é muito grande e ele acaba voltando para junto de sua família que está preocupada com o sumiço da cachorra que aparece momentos depois.


Capítulo 9 - BALEIA:

A cachorra estava quase morrendo, sem pêlos, muito magra e com feridas pelo corpo todo, inclusive a boca que dificultava sua alimentação. Fabiano acha que ela sofre de hidrofobia e resolve matá-la, temendo que transmita a doença aos filhos. Os meninos gritam e choram preocupados com a cachorra, Fabiano atira na cadela que foge, delira e morre. A morte da cachorra é descrita de forma bela e delicada mostrando o amor e carinho da cachorra para a família.


Capítulo 10 - CONTAS:

Fabiano recebia a quarta parte dos bezerros e a terceira dos cabritos e os vendia ao patrão em troca de alimento quando não tinha mais animal para a venda, ficava endividado. Fabiano se sentia roubado, um dia pediu a sinha Vitória que fizesse as contas, depois foi fazer os acertos com o patrão e verificou novamente que as contas diferiam, Fabiano reclama ao patrão, que se irrita, diz que são os juros e manda ele procurar outro emprego. Sabendo que é enganado Fabiano se desculpa e sai.
Fabiano se vê oprimido, se acha um bruto, e por isso é humilhado, recordou o que havia sido cobrado pelo fiscal da prefeitura por causa da tentativa de venda de um porco magro.


Capítulo 11 - O SOLDADO AMARELO:

Fabiano reencontra na caatinga o soldado amarelo que um ano antes o prendera e espancara, o desejo de vingança lhe cobre o corpo, depois percebe que o soldado é um homem, uma autoridade, vendo-o tremer de medo, se irrita pois, ele era o mesmo que pisou-lhe o pé e o prendeu, vê que o soldado é mais fraco que ele, mas quando enfim, o soldado, ganha um pouco de coragem e pergunta o caminho, Fabiano tira o chapéu curva-se e ensina o caminho, dizendo: “ Governo é governo.”


Capítulo 12 - O MUNDO COBERTO DE PENAS:

O capítulo mais bonito e poético da obra, o bebedouro está cheio de aves, arribações, que é o prenúncio da seca novamente, o casal está sonhando desgraças, quando sinha Vitória diz que o sol secava os poços e as aves bebiam o resto de água e queriam matar o gado, Fabiano acha que a mulher está delirando, porque não vê como as aves, bichos tão pequenos, poderiam matar bois e cabras.
Fabiano enquanto fuma pensa no que a mulher tinha e dito e, descrito em uma beleza sem igual, a frase começa a fazer sentido para ele, percebe que as aves bebiam a água do gado, este passa sede e morre, então percebe que as aves matam o gado, Fabiano esquece da desgraça e ri encantado com a esperteza da mulher, o mundo por alguns instantes deixou de ser objetivo, real e passa a ser subjetivo e mágico.
Depois Fabiano pega a espingarda para matar algumas aves, que vão servir de alimento para a fuga, sente saudades da cachorra e se questiona se agiu bem em matá-la, lembrou do encontro com o soldado amarelo e a falta de coragem, lembrou das contas do patrão e percebeu que a mulher entendia muitas coisas que ele não, achou que ela merecia a cama de couro e com medo, pois já escurecia foi para casa, combinar a viagem.


Capítulo 13 - A FUGA:

Com a seca a vida na fazenda fica difícil, Fabiano matou um bezerro e fugiu de madrugada com a família, sem se despedir do patrão, pois não havia meio de saldar a dívida restante.
Sinha Vitória sente saudades da cachorra, ela a família caminham em direção ao sul, Fabiano está triste em deixar a fazenda, ele e a mulher conversam, monossilábicamente. Fabiano tem esperança quanto ao futuro dos filhos, imagina-os estudando e morando em uma cidade grande. Sinha Vitória pensa que poderá, um ter a cama igual ao Seu Tomás da bolandeira, e o capítulo termina com o casal se imaginado velhos, mas sabem que "O sertão mandaria para a cidade homens fortes, brutos, como Fabiano, Sinha Vitória e os dois meninos."

2.2 Personagens


É tamanha a verossimilhança na caracterização da família. A seca faz com que os personagens se embruteçam, revelando seus aspectos rústicos e rudes, o autor freqüentemente compara-os a animais, pois elas excedem na introspecção, não falam, grunhem, rosnam, resmungam, gesticulam, usam interjeições e palavras soltas e desconexas. Em uma evidente zoomorfização das personagens, cabe ao narrador interpretar e expor os seus desejos e anseios. Todas as personagens do romance são planas, travam um luta interna e externa para vencer seus objetivos, e mesmo que queiram suas características permanecem invariáveis.


Fabiano

Fabiano é não um herói, mas um anti-herói. Duro como a terra seca que nunca o acolhe nem abriga, é mesmo o bicho com o qual se designa. Branco, ruivo, de olhos azuis, Fabiano é homem bruto e sua linguagem acompanha isso:

“O pirralho não se mexeu, e Fabiano desejou matá-lo. Tinha o coração grosso, queria responsabilizar alguém pela sua desgraça...”(pág. 10)

“- Fabiano, você é um homem, exclamou em voz alta.
Conteve-se, notou que os meninos estavam perto, com certeza iam admirar-se ouvindo-o falar só. E, pensando bem, ele não era um homem: era apenas um cabra ocupado em guardar coisas dos outros. Vermelho, queimado, tinha os olhos azuis, a barba e os cabelos ruivos; mas como vivia em terra alheia, cuidava de animais alheios, descobria-se , encolhia-se na presença dos brancos e julgava-se cabra.
Olhou em torno, com receio de que, fora os meninos, alguém tivesse percebido a frase imprudente. Corrigiu-a , murmurando:
- Você é um bicho, Fabiano."( pág 18)

É um vaqueiro, ofício exercido pelos seus antepassados. Fabiano sempre está dividido entre a revolta e a passividade, optando pela segunda atitude diante de sua impotência, que é reforçada pela linguagem enxuta e econômica tem como exemplo de homem culto seu Tomás da bolandeira, tenta fazer uso de seu vocabulário despropositadamente.

"Vivia longe dos homens, só se dava bem com os animais. Os pés duros quebravam espinhos e não sentiam a quentura da terra. Montado, confundia-se com o cavalo, grudava-se a ele. E falava uma linguagem cantada, monossilábica e gutural, que o companheiro entendia. A pé, não se agüentava bem. Pendia para um lado, para o outro lado, cambaio, torto e feio." (pág 19 )

“O vocabulário dele era pequeno, mas em horas de comunicabilidade enriquecia-se com algumas expressões de seu Tomas da bolandeira ...
Fabiano atentou na farda com respeito e gaguejou, procurando as palavras de seu Tomás da bolandeira:
_ Isto é. Vamos e não vamos. Quer dizer. Enfim, contanto, etc. É conforme. (pág 27)

Devido a miséria que sempre o rodeia, incapacidade de compreensão do mundo, se vê sempre perseguido, marginalizado e injustiçado:

“Aí certificou-se novamente de que o querosene estava batizado e decidiu beber uma pinga, pois sentia calor. Seu Inácio trouxe a garrafa de aguardente. Fabiano virou o copo de um trago, cuspiu, limpou os beiços à manga, contraiu o rosto. Ia jurar que a cachaça tinha água. Porque seria que seu Inácio botava água em tudo? Perguntou mentalmente ... “(pág 26)

“Comparando-se aos tipos da cidade, Fabiano reconhecia-se inferior. Por isso desconfiava que os outros mangavam dele. Fazia-se carrancudo e evitava conversas. Só lhe falavam com o fim de tirar-lhe qualquer coisa. Os negociantes furtavam na medida, no preço e na conta. O patrão realizava cm pena e tinha cálculos incompreensíveis (...) Todos lhe davam prejuízos. Os caixeiros, os comerciantes e o proprietário tiravam-lhe o couro, e os que não tinham negócio com ele riam vendo-o passar na rua tropeçando. “ (pág 76)


Sinha vitória

Mulher de pernas grossas, seios cheios e nádegas volumosas, mas que secavam devido a seca. Possui um espírito inconformado, sonha em colocar os filhos na escola e com uma cama como a de seu Tomás, pois dorme em cama de vara, a cama de couro é o símbolo do homem não-nômade, o símbolo do que os brancos, com dinheiro, podiam comprar.

"Avizinhou-se da janela baixa da cozinha, viu os meninos entretidos no barreiro, sujos de lama, fabricando bois de barro, que secavam ao sol, sob o pé —de- turco, e não encontrou motivo para repreendê-los. Pensou de novo na cama de varas e mentalmente xingou Fabiano. Dormiam naquilo, tinha-se acostumado, mas seria mais agradável dormirem numa cama de lastro de couro, como outras pessoas.
Fazia mais de um ano que falava nisso ao marido."(pág. 40)

Sinha Vitória é mais esperta que o marido, é ela que faz contas e percebe que o patrão trapaceia:

“Ora, daquela vez, como das outras, Fabiano ajustou o gado, arrependeu-se, enfim deixou a transação meio apalavrada e foi consultar a mulher. Sinha Vitória mandou os meninos para o barreiro, sentou-se na cozinha, concentrou-se, distribuiu pelo chão sementes de várias espécies, realizou somas e diminuições. No dia seguinte Fabiano voltou à cidade, mas ao fechar o negócio notou que as operações de Sinha Vitória, como de costume, diferiam das do patrão. reclamou e obteve a explicação habitual: a diferença era proveniente de juros.
Não se conformou: devia haver engano. Ele era bruto, sim senhor, via-se perfeitamente que era bruto, mas a mulher tinha miolo...( pág 93)

Seu inconformismo faz com que ela se transforme em uma pessoa queixosa, sendo impaciente com os filhos e um tanto quanto amargurada, mas é a única da família que consegue pensar claramente, como no Capítulo 12 que ela percebe que o mulungu fazia que o gado morressem de sede, coisa que chegar intrigar e alegrar Fabiano:

"O mulungu do bebedouro cobria-se de arribações. mau sinal, provavelmente o sertão ia pegar fogo. Vinham em bandos, arranchavam-se nas árvores da beira do rio, descansavam, bebiam e , como em redor não havia comida, seguiam viagem para o Sul. O casal agoniado sonhava desgraças. O sol chupava os poços, e aquelas excomungadas levavam o resto da água, queriam matar o gado."(pág 108)


O menino mais novo

Os dois irmãos: o menino mais novo, como o menino mais velho não possuem nome, representam outros tantos meninos nordestinos marcados pelo anonimato e a hereditaridade e tradição de um universo arcaico.
O menino mais novo vê no pai a figura do herói, gosta de vê-lo montar e o admira, apesar de temê-lo:

"Ficou assim uma eternidade, cheio de alegria e medo, até que a égua voltou e começou a pular furiosamente no pátio, como se tivesse o diabo no corpo. De repente, a cilha rebentou e houve um desmoronamento. O pequeno deu um grito, ia tombar da porteira. Mas sossegou logo. Fabiano tinha caído em pé e recolhia-se banzeiro e cambaio, os arreios no braço. Os estribos, soltos na carreira desesperada, batiam um no outro, as rosetas das esporas tiniam."(pág 47)


O menino mais velho

O menino mais velho possui um vocabulário tão minguado que o autor compara o seu com o do papagaio morto, valendo-se apenas de exclamações e gestos, mas ele é curioso, ouve palavra inferno e tenta saber seu significado, deseja até decorá-lo, porém a sua busca pelo significado da palavra é frustrante:

"Aí Sinha Vitória se zangou, achou-o insolente e aplicou-lhe um cocorote.
O menino saiu indignado com a injustiça, atravessou o terreiro, escondeu-se debaixo das catingueiras murchas, à beira da lagoa vazia...(pág 54)

O menino se vê compreendido apenas pela cachorra:

“Todos os abandonavam, a cadelinha era o único vivente que mostrava simpatia... (pág 56)


Baleia

A cadela de estimação da família é o personagem construída com mais humanidade, sempre é solidária com os demais membros, apesar de ser enxotada e chutada por estes, ficando sempre com o pouco que sobra da alimentação. O nome Baleia ganha dois sentidos, além de ser uma ironia, é, também, como uma compensação pela carência d'água.
No Capítulo que leva seu nome, primeiro a ser escrito pelo autor, retrata sua morte através de Fabiano devido a suspeita de hidrofobia, a descrição é delicada e suave, o narrador mostra a bondade e a amizade, o carinho a esperteza e até o senso de responsabilidade do animal:

"Uma noite de inverno, gelada e nevoenta, cercava a criaturinha. Silêncio completo, nenhum sinal de vida nos arredores. O galo velho não cantava no poleiro, nem Fabiano roncava na cama de varas. estes sons não interessavam Baleia, mas quando o galo batia as asas e Fabiano se virava, emanações familiares revelavam-lhe a presença deles. Agora parecia que a fazenda se tinha despovoado.” (pág 90)

“Baleia encostava a cabecinha fatigada na pedra. A pedra estava fria, certamente Sinha Vitória tinha deixado o fogo apagar-se muito cedo.
Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes."( pág 91)



Seu Tomás da bolandeira

Antigo patrão de Fabiano. Personagem que só aparece por meio de lembranças, é tido como referência para Fabiano e sinha Vitória de inteligência, cultura, civilidade e cidadania. Enquanto Fabiano admira sua linguagem, tentando imitá-la de forma desconexa, sinha Vitória deseja uma cama de couro igual à sua. É a representação das aspirações de ascensão do casal.

"Seu Tomás da bolandeira falava bem, estragava os olhos em cima de jornais e livros, mas não sabia mandar: pedia. Esquisitice um homem remediado ser cortês. Até o povo censurava aquelas maneiras. Mas todos obedeciam a ele. Ah! Quem disse que não obedeciam?”(pág 22)

“(...) Seu Tomás era pessoa de consideração e votava. Quem diria? (pág 27)


O soldado amarelo

O soldado representa o governo, não possui nome apenas a patente, é corrupto, e oportunista, convida Fabiano para um jogo de cartas, depois o humilha e o prende. Quando se vê perdido na caatinga, sente medo:

“_ Vossemecê não tem direito de provocar os que estão quietos.
_ Desafasta, bradou o polícia.
E insultou Fabiano, porque ele tinha deixado a bodega sem se despedir. (...)
O outro continuou a pisar com força. Fabiano impacientou-se e xingou a mãe dele. Aí o amarelo apitou, e em poucos minutos o destacamento da cidade rodeava o jatobá .”(pág 29)

“O soldado, magrinho, enfezadinho, tremia. E Fabiano tinha vontade de levantar o facão de novo. Tinha vontade, mas os músculos afrouxavam. Realmente não quiser matar um cristão: procedera como quando, a montar brabo, evitava galhos e espinhos. "(pág 100)

“ Afastou-se, inquieto. Vendo-o acanalhado e ordeiro, o soldado ganhou coragem, avançou pisou firme, perguntou o caminho. E Fabiano tirou o chapéu de couro.
_ Governo é governo.”(pág 107)


O dono da fazenda

O dono da fazenda representa o vínculo desigual e opressor entre patrão e empregado é exigente, rouba Fabiano nas contas, e quando este reclama o manda procurar outro emprego:

“Não se conformou: devia haver engano. Ele era bruto, sim senhor, via-se perfeitamente que era bruto, mas a mulher tinha miolo. Com certeza havia um erro no papel do branco. Não se descobriu o erro, e Fabiano perdeu os estribos. Passar a vida inteira assim, no toco, entregando o que era dele de mão beijada! Estava direito aquilo? Trabalhar como negro e nunca arranjar carta de alforria!
O patrão zangou-se, repeliu a insolência, achou bom que o vaqueiro fosse procurar serviço noutra fazenda.
Aí Fabiano baixou a pancada e amunhecou."(pág. 93)


2.3 Tempo

O tempo narrativo da ação ocorre no período de duas estiagens, porém o tempo predominante é o psicológico.


2.4 Espaço

O espaço da ação é o sertão nordestino.
"Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes.(..) Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos galhos pelados da catinga rala.” (Pág 9)
2.5 Narrador

O foco narrativo do romance é em terceira pessoa, com narrador de onisciência multisseletiva, através dele revela pensamentos, percepções e sentimentos das personagens, numa mistura íntima e bela das vozes internas destas, utilizada até para a cadela Baleia, assim é predominante o discurso indireto livre, o narrador envolve as personagens nas palavras que elas não tem, pois carecem de articulações de pensamento e comunicação.

"Agora queria entender-se com Sinha Vitória a respeito da educação dos pequenos. Certamente ela não era culpada. Entregue aos arranjos da casa, regando os craveiros e as panelas de losna, descendo ao bebedouro com o pote vazio e regressando com o pote cheio, deixava os filhos soltos no barreiro, enlameados como porcos. E eles estavam perguntadores, insuportáveis. Fabiano dava-se bem com a ignorância. Tinha o direito de saber? Tinha? Não tinha." ( pág 21)

“Em horas de maluqueira tentava imita-lo (seu Tomás da bolandeira): dizia palavras difíceis, truncando tudo, e convencia-se de que melhorava. Tolice. Via-se perfeitamente que um sujeito como ele não tinha nascido para falar certo."(pág 22)

“Esqueceu-se e de novo lhe veio o desejo de morder Fabiano, que lhe apareceu diante dos olhos meio vidrados, com um objeto esquisito na mão. Não conhecia o objeto, mas pôs a tremer, convencida de que ele encerrava surpresas desagradáveis."(pág 89)


O discurso direto é utilizado raramente e restringindo-se a monossílabos, interjeições e frases sintéticas ou interrogativas.

"Fabiano caiu de joelhos, repetidamente uma lâmina de facão bateu-lhe no peito, outra nas costas. Em seguida abriram uma porta, deram-lhe um safanão que o aremessou para as trevas do cárcere. A chave tilintou na fechadura, e Fabiano ergueu-se atordoado, canbaleou, sentou-se num canto, rosnando:
_ Hum! Hum!”(pág 30)

"- Por que é que vossemecê bota água em tudo?
Seu Inácio fingiu não ouvir. E Fabiano foi sentar-se na calçada, resolvido a conversar. O vocabulário dele era pequeno, mas em horas de comunicabilidade enriquecia-se com algumas expressões de seu Tomás da bolandeira. Pobre se seu Tomás." (pág 26)


2.6 Linguagem

A linguagem na obra Vidas Secas é sintética, precisa e concisa, sem sentimentalismo, de vocabulário exato, econômica de adjetivos, centrada nos substantivos selecionados dentro de períodos curtos, isso traz um estilo seco, tal qual a terra e a vida daquelas personagens, a linguagem também é marcada pelo uso do pretérito (perfeito, imperfeito ou o mais-que-perfeito), porém a repetição do pretérito tem a força do presente. No discurso direto a linguagem é monossilábica, grutal e cantada, de caráter regional, mas com adequação a sintaxe tradicional.
Mesmo dentro de uma linguagem crua, o autor utiliza um certo rebuscamento, também presente em outras obras, o livro sem nenhum espírito poético, chega atingir, às vezes, um estado de poesia, como no Capítulo: O mundo coberto de penas, podemos interpretar como um mundo coberto de pesar, pois as aves são o prenúncio da seca e Fabiano e a mulher visualiza o fim de sua estadia naquele lugar:

"O mulungu do bebedouro cobria-se de arribações. mau sinal, provavelmente o sertão ia pegar fogo. Vinham em bandos, arranchavam-se nas árvores da beira do rio, descansavam, bebiam e , como em redor não havia comida, seguiam viagem para o Sul. O casal agoniado sonhava desgraças. O sol chupava os poços, e aquelas excomungadas levavam o resto da água, queriam matar o gado."(pág 108)

Neste Capítulo também retrata a belíssima a passagem em que Fabiano descobre ao sentido da frase de sinha Vitória, o sentido de causa e efeito. A verdade oculta nas palavras dela faz com que ele esqueça da seca. O mundo por alguns instantes fica mais belo, pois o mulungu estava enfeitado de penas :

“Como era que sinha Vitória tinha dito? A frase dela tornou ao espírito de Fabiano e logo a significação apareceu. As arribações bebiam a água. Bem O gado curtia sede e morria. Muito bem. As arribações matavam o gado. Estava certo. Matutando, a gente via que era assim, mas sinha Vitória largava tiradas embaraçosas. Agora Fabiano percebia o que ela queria dizer. Esqueceu a infelicidade próxima, riu-se encantado com a esperteza de sinha Vitória (...)”(pág 109)


3- CONCLUSÃO

O mais brasileiro dos livros do Sr, Graciliano Ramos segundo o crítico Álvaro Lins, mas o enredo que mostra uma família de retirantes que foge da, e sofre com, a seca e a miséria, talvez seja um drama universal, é por isso tão tocante e de importância como documento de denuncia social para a literatura brasileira.
Graciliano Ramos usa de uma dureza, frieza e falta de articulação na comunicação dos personagens, que se comunicam com gestos e interjeições e quando conversam é um desfile de monólogos, isso aponta verossimilhança para com aquele povo, que vive fugindo em busca de água e alimento, semelhantes a animais peregrinos, porém quando descreve o animal de estimação da família a cachorra Baleia, traço importante na linguagem e estilo da obra, é terno, a cachorra é o único personagem que recebe e faz carícias, na obra este animal possui mais humanidade que o resto da família.
O livro Vidas Secas, é centrada no sertão nordestino, mas essas vidas que são secas pela falta de chuva, também são secas de esperanças, oportunidades, justiça, respeito, educação e civilidade, poderia ser o retrato de uma família entregue a própria sorte e as adversidades no deserto do norte-africano, nas terras arenosas do oriente, nas terras rochosas do Peru, Bolívia ou Chile, ou em qualquer outra parte do mundo.
Vidas Secas é de importância impar, pois retrata um mundo, até hoje e principalmente na época da publicação, desconhecido para os leitores, sobretudo dos grandes centros urbanos, desatentos e ignorantes as dificuldades e necessidades de seus semelhantes no interior do país.


4- BIBLIOGRAFIA

RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 65º Ed. Rio de Janeiro, Record, 1994.

LEITE, Ligia Chiappini Mores. O Foco Narrativo. 3º Ed. São Paulo, Ática, 1987.

GANCHO, Cândida Vilares. Como Analisar Narrativas. 8º Ed. São Paulo,
Ática, 2004.

Tese e Antíteses em A Cidade e as Serras

por Fabiano Fernandes Garcez




Publicado em 1901, um ano após a morte de Eça de Queirós, o romance A Cidade e as Serras foi desenvolvido a partir da idéia central do conto Civilização, datado de 1892. Dois personagens centrais, os amigos de infância: Jacinto de Tormes, o protagonista, e José Fernandes, o narrador.
A obra pode ser dividida em duas partes. Após uma rápida passada sobre a história da família do protagonista, retratando, principalmente, os avós e o motivo da saída da família de Portugal para a França, temos a primeira parte que se passa em Paris, na mansão nos Campos Elíseos 202, Zé Fernandes conta a vida de Jacinto, o “Príncipe da Grã-Ventura”, um homem extremamente rico, que, embora tenha nascido em Paris, tem suas rendas dos campos de Portugal, onde a família possui plantações e produção de vinho, cortiça e oliveira.
Positivista, Jacinto, defendia a idéia de que “o homem só é superiormente feliz quando é superiormente civilizado”. A civilização é cidade grande, é máquina e progresso que é representado na obra pelos diversos aparelhos que estão na mansão, como por exemplo: o telex, o telefone, o teatrofone, o conferenciofone, o marcador de páginas, a pena elétrica e etc.
Em fevereiro de 1880, José Fernandes foi chamado pelo tio e parte para Guiães, Portugal, voltando apenas sete anos depois, porém o entusiasmo e a animação de antes deixam Jacinto, seus aparelhos lhe deixam na mão quando são necessários. Ao perguntar ao seu empregado, Grillo, Zé Fernandes recebe a resposta: “Sua excelência sofre de “fartura”.
Jacinto cansado da vida resolve ir a Tormes, Portugal, para reconstruir a capela e enterrar os ossos de seus avós. Porém no caminho para lá acaba desencontrando-se com os criados e suas bagagens. Chegando lá, segunda parte da obra, apenas com a roupa do corpo, Jacinto e Zé Fernandes verificam que sua casa ainda não está pronta, bem como não chegaram seus pertences enviados meses antes, porém é bem recebido, come bem e chega até reparar o céu e pela primeira vez em muito tempo dorme uma noite inteira.
Zé Fernandes volta para sua propriedade em Guiães, quando o encontra ele está renovado e adorando a vida do simples do campo.
Ao conhecer as reais circunstâncias de pobreza que seus empregados vivem, Jacinto resolve construir casa novas e passa a ser chamado como “o pai dos pobres”.
Jacinto se casa com Joaninha, prima de José Fernandes, e tem dois filhos. Após cinco anos ZéFernandes resolve voltar a Paris e a vê de um modo diferente a pressa, a falsidade, a degeneração do espírito da cidade e das pessoas que nela vivem.
Enfim Zé Fernandes volta a Portugal onde é esperado por Joaninha, Jacinto e os filhos

A tese:

Tédio da civilização (cidade) X Os encantos da natureza (Serras)

Nos campos o vilão sem susto passa
inquieto na corte o nobre mora;
o que é ser infeliz aquele ignora,
este encontra nas pompas a desgraça;

aquele canta e ri, não se embaraça
com essas coisas vãs que o mundo adora;
este (oh cega ambição!) mil vezes chora,
porque não acha bem que o satisfaça;

aquele dorme em paz no chão deitado,
este no ebúrneo leito precioso nutre,
exaspera velador cuidado,

triste, sai do palácio majestoso.
Se hás de ser cortesão mas desgraçado,
antes ser camponês e venturoso.
Bocage




O crítico Jacinto do Prado Coelho, ao admitir que a atitude que ditou A Cidade e as Serras seria aquela que o escritor defendia na sua última fase, e que ela corresponderia: A Cidade e as Serras, para fazer efetivamente uma apologia a um ideal de justiça, não se deveria transformar num panfleto contra a Máquina, porque o mal não estaria na máquina, mas sim na mentalidade e na organização social.

Enganados pela ciência, embrulhados nas subtilezas balofas da economia política, maravilhados como crianças pelas habilidades da mecânica, durante setenta anos construímos freneticamente vapores, caminhos de ferro, máquinas, fábricas, telégrafos, uma imensa ferramentagem, imaginando que por ela realizaríamos a felicidade definitiva dos homens e mal antevendo que aos nossos pés e por motivo mesmo dessa nova civilização utilitária se estava criando uma massa imensa de miséria humana, e que, com cada pedaço de ferro que fundíamos e capitalizávamos, íamos criar mais um pobre!

Eça de Queirós em A Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro em 23 de Abril de 1895.

1º Antítese :

Guerra da Cal, para quem a obra apresentava a ironização amorosa dos dois pendores contraditórios da alma do escritor.
Um cosmopolita, outro ruralista
Símbolos de duas facetas fundamentais do espírito lusitano: bucolismo e extravagância.
Maria Lúcia Lepecki comenta:
Se José Fernandes não nos inibe de desconfiarmos da conversão de Jacinto, se o próprio narrador não é alheio a tal desconfiança, é porque faz, simultaneamente, duas leituras da sua personagem. Uma delas mostra, em quantidade textual maior, a correspondência regresso físico ao campo - conversão e revisão parcial de valores pessoais e de formas de estar no mundo. A outra leitura, que o narrador escreve por indícios, sugestões, por rápidos comentários irônicos cria correspondência diversa: regresso ao campo - não modificação do protagonista.

(...) Mas, certa manhã, em Guiães, acordei aos berros da tia Vicência! Um homem chegara, misterioso, com outros homens, trazendo arame, para instalar na nossa casa o novo invento. Sosseguei a tia Vicência, jurando que essa máquina nem fazia barulho, nem trazia doenças, nem atraía as trovoadas. Mas corri a Tormes. Jacinto sorriu, encolhendo os ombros:
-Que queres? Em Guiães está o boticário, está o carniceiro... E, depois, estás tu!
Era fraternal. Todavia pensei: Estamos perdidos! Dentro dum mês temos a pobre Joana a apertar o vestido pôr meio duma máquina! Pois não! o Progresso, que, à intimação de Jacinto, subira a Tormes a estabelecer aquela sua maravilha, pensando talvez que conquistara mais um reino para desfear, desceu, silenciosamente, desiludido, e não avistamos mais sobre a serra a sua hirta sombra cor de ferro e de fuligem. Então compreendi que, verdadeiramente, na alma de Jacinto se estabelecera o equilíbrio da vida, e com ele a Grã-Ventura, de que tanto tempo ele fora o Príncipe sem Principado. (...)

João Medina, em Eça Político, conclui, após concessões feitas à complexidade deste romance, que a obra, através do seu protagonista Jacinto, representa, por um lado, a reconciliação do próprio Eça com uma pátria que perdera em infindáveis viagens desde 1872 e, por outro, a desilusão perante uma França cada vez mais intolerante.

2º Antítese:

Seguindo o pensamento do crítico Frank Sousa, a Mulher em A Cidade e as Serras aparece julgada de forma dual, ora no seu lado de perversão, ora no seu lado de redenção.
Estabeleceu-se uma nítida oposição entre a doença, o vício, a ruína e a decadência da mulher parisiense:

-Ó Jacinto! Quem é esta Diana que incessantemente te escreve, te telefona, te telegrafa, te...?
-Diana... Diana de Lorge. É uma cocotte. É uma grande cocotte!
-Tua?
-Minha, minha... Não! tenho um bocado.
E como eu lamentava que o meu Príncipe, senhor tão rico e de tão fino orgulho, pôr economia duma gamela própria chafurdasse com outros numa gamela pública – Jacinto levantou os ombros, com um camarão espetado no garfo:
-Tu vens das serras... Uma cidade como Paris, Zé Fernandes, precisa ter cortesãs de grande pompa e grande fausto. Ora para montar em Paris, nesta tremenda carestia de Paris, uma cocotte com os seus vestidos, os seus diamantes, os seus cavalos, os seus lacaios, os seus camarotes, as suas festas, o seu palacete, a sua publicidade, a sua insolência, é necessário que se agremiem umas poucas de fortunas, se forme um sindicato! Somos uns sete, no Clube. Eu pago um bocado... Mas meramente pôr Civismo, para dotar a Cidade com uma cocotte monumental. De resto não chafurdo. Pobre Diana!... dos ombros para baixo nem sei se tem a pele cor de neve ou cor de limão.
Arregalei um olho divertido:
-Dos ombros para baixo?... E para cima?
-Ó! para cima tem pó de arroz!... Mas é uma seca! Sempre bilhetes, sempre telefones, sempre telegramas. E três mil francos pôr mês, além das flores... Uma maçada!
E as duas rugas do meu Príncipe, aos lados do seu afilado nariz, curvado sobre a salada, eram como dois vales muito tristes, ao entardecer.


E a saúde, o prazer, a vida e a autenticidade da mulher das serras:

-Como está o tio Adrião?
Surdo, o excelente Manuel sorriu, deleitado:
-E então vossa excelência, bem? A Srª D. Joaninha ainda agora andava no laranjal com o pequeno da Josefa.
Seguimos pôr ruazinhas bem areadas, orladas de alfazema e buxo alto, enquanto eu contava ao meu Príncipe que aquele pequenito da Josefa era um afilhadinho da prima Joana, e agora o seu encanto e o seu cuidado todo.
-Esta minha santa prima, apesar de solteira, tem aí pela freguesia uma verdadeira filharada. E não é só dar-lhes roupas e presentes, e ajudar as mães. Mas até os lava, e os penteia, e lhes trata as tosses. Nunca a encontro sem alguma criancita ao colo... Agora anda na paixão deste Josezinho.


Sobre Joaninha Maria Lúcia Lepecki diz:
Quando, pela primeira vez surge diante do senhor de Tormes, ela é já a imagem da maternidade.
Porém, diz Zé Fernandes, sobre as mulheres das Serras:

E esta Tormes, Jacinto, esta tua reconciliação com a Natureza, e o renunciamento às mentiras da Civilização é uma linda história... Mas, caramba, faltam mulheres!
Ele concordava, rindo, languidamente estendido na cadeira de vime:
-Com efeito, há aqui falta de mulher, com M grande. Mas essas senhoras aí das casas dos arredores... Não sei, mas estou pensando que se devem parecer com legumes. Sãs, nutritivas, excelentes para a panela – mas, enfim, legumes. As mulheres que os poetas comparam às flores são sempre as mulheres das cortes, das Capitais, às quais, invariavelmente, desde Hesíodo e Horácio, se rendem os poetas... e evidentemente não há perfume, nem graça, nem elegância, nem requinte, numa cenoura ou numa couve... Não devem ser interessantes as senhoras da minha serra.
-Eu te digo... A tua vizinha mais chegada, a filha do d. Teotônio, com efeito, salvo o respeito que se deve à casa ilustre dos Barbedos, é um mostrengo! A irmã dos Albergarias, da Quinta da Loja, também não tentaria nem mesmo o precisado santo Antão. Sobretudo se se despisse, porque é um espinafre infernal! Essa realmente é legume, e não dos nutritivos.
-Tu o disseste: espinafre!
-Temos também a D. Beatriz Veloso... Essa é bonita... Mas, menino, que horrivelmente bem falante! Fala como as heroínas do Camilo. Tu nunca leste o Camilo... e depois, um tom de voz que te não sei descrever, o tom com que se fala em D. Maria... Enfim, um horror! E perguntas pavorosas. “V. Exª, Sr. Doutor, não se delicia com Lamartine?” Já me disse esta, a indecente!
-E tu?
-Eu! Arregalei os olhos... “Ó Lamartine!” Mas, coitada, é uma excelente rapariga! Agora, pôr outro lado, temos as Rojões, as filhas do João Rojão, duas flores, muito frescas, muito alegres, com um cheiro e um brilho a sadio, e muito simples... A tia Vicência morre pôr elas. Depois há a mulher do Dr. Alípio, que é uma beleza. Ó! uma criatura esplêndida! Mas, enfim, é a mulher do Dr. Alípio, e tu renunciaste aos deveres da Civilização... Além disso, mulher muito séria, toda absorvida nos seus dois pequenos, que parecem dois anjinhos de Murillo... E quem mais? Já agora, quero completar a lista do pessoal feminino. Temos a Melo Rebelo, de Sandofim, muito engraçada, com cabelo lindo... Borda na perfeição, faz doces como uma freira do antigo regime... Havia também uma Júlia Lobo, muito linda, mas morreu... Agora não me lembro de mais. Mas falta a flor da Serra, que é a minha prima Joaninha, da Flor da Malva! Essa é uma perfeição de rapariga (...)

E o que diz Jacinto:

-Ana Vaqueira! Um copo de água, bem lavado, da fonte velha! Pulei, imensamente divertido:
-Ó Jacinto! E as águas carbonatadas? E as fosfatadas? E as esterilizadas? E as sódicas?...
O meu Príncipe atirou os ombros com um desdém soberbo. E aclamou a aparição de um grande copo, todo embaciado pela frescura nevada da água refulgente, que uma bela moça trazia num prato. Eu admirei sobretudo a moça... Que olhos, dum negro tão líquido e sério! No andar, no quebrar da cinta, que harmonia e que graça de Ninfa latina!
E apenas pela porta desaparecera a esplêndida aparição:
-Ó Jacinto, eu daqui a um instante também quero água! E se compete a esta rapariga trazer as coisas, eu, de cinco em cinco minutos, quero uma coisa!... Que olhos, que corpo... Caramba, menino! Eis a poesia, toda viva, da serra...
O meu Príncipe sorria, com sinceridade:
-Não! não nos iludamos, Zé Fernandes, nem façamos Arcádia. É uma bela moça, mas uma bruta... Não há ali mais poesia, nem mais sensibilidade, nem mesmo mais beleza do que numa linda vaca turina. Merece o seu nome de Ana Vaqueira. Trabalha bem, digere bem, concebe bem. Para isso a fez a Natureza, assim sã e rija; e ela cumpre. O marido todavia não parece contente, porque a desanca. Também é um belo bruto... Não, meu filho, a serra é maravilhosa e muito grato lhe estou... Mas temos aqui a fêmea em toda a sua animalidade e o macho em todo o seu egoísmo... são porém verdadeiros, genuinamente verdadeiros! E esta verdade, Zé Fernandes, é para mim um repouso.


Eça de Queirós, em As Rosas, in Notas Contemporâneas, associa as rosas tanto à figura da Virgem Maria como a Vênus. Por isso, tal como bem notou Frank Sousa:
A Joaninha do romance, mais do que a do conto Civilização, assume uma postura simbólica, aparecendo [...], como uma espécie de Virgem Maria por um lado, e como uma figura também sensual, ou seja, uma espécie de Vénus rústica, por outro.

(... ) Mas, à porta, que de repente se abriu, apareceu minha prima Joaninha, corada do passeio e do vivo ar, com um vestido claro um pouco aberto no pescoço, que fundia mais docemente, numa larga claridade, o esplendor branco da sua pele, e o louro ondeado dos seus cabelos – lindamente risonha, na surpresa que alargava os seus largos, luminosos olhos negros, e trazendo ao colo uma criancinha, gorda e cor-de-rosa, apenas coberta com uma camisinha, de grandes laços azuis. (...)


A propósito ainda de Joaninha, de quem os estudiosos René Costa e Peggy Sharpe-Valadares salientaram a sua relação com a Virgem Maria, Frank Sousa afirma que, concentrando ela em si os ideais de santa, de mãe e de mulher bela e sã e Jacinto, recebendo o título de Pai dos Pobres e bom senhor.
O casamento de Jacinto e Joaninha é, assim, uma união cristã entre dois seres belos, jovens e virtuosos, além de abastados. Mas o ideal pagão de felicidade no campo (o ideal clássico da aurea mediocritas), as repetidas referências aos autores da Antiguidade grega e latina e aos arquétipos de vida que nele se encontram, parecem indicar que Eça tentou fundir a tradição cristã com a tradição clássica numa coexistência harmoniosa.
Se Joaninha sintetiza o lado positivo e redentor da Mulher em A Cidade e as Serras, o lado da perversão feminina também não está ausente, só que associado à Urbe e aos seus vícios, os quais M.me d'Oriol e Colombe (nesta até é apontado o lesbianismo) bem tipificam.

-Madame Colombe?
A barbuda comadre recolheu lentamente a vaza:
-Já não mora... Abalou esta manhã, para outra terra com outra porca!


3º Antítese:

Devemos constatar que a presença clássica em Eça de Queirós é uma evidência, e isto tanto no que diz respeito aos clássicos da Antiguidade greco-latina, quer aos clássicos renascentistas, quer ainda a escritores de outras épocas, mas cujo estilo dimanava dos cânones do Classicismo.
As referências que aparecem em A Cidade e as Serras a autores gregos, como por exemplo, a Heródoto, a Platão, a Plutarco, a Eurípides, a Sófocles, para só citar alguns:
De todos os autores greco-latinos, é com os poetas Virgílio e Homero que A Cidade e as Serras estabelece um dialogismo mais preponderante.
A primeira leitura de Jacinto nas serras é precisamente a do livro I das Bucólicas, tal como o passo em latim, apropriado às circunstâncias de uma manhã de esplendor em Tormes e à personagem Jacinto, bem sugere:

Fortunate Jacinthe! Hic inter arva nota
Et fontes sacros, captabis opacum...


Nestes versos, se substituirmos o lexema Jacinthe por senex e arva por flumina, aparece-nos o texto original da Bucólica I
Cuja tradução em português é: Afortunado velho... entre os rios conhecidos e as sagradas fontes, procurarás a fresca sombra.
Já anteriormente, porém, se alude a Virgílio, num diálogo interessantíssimo entre o protagonista e o narrador Zé Fernandes, onde o vinho de Tormes e a doçura da vida rural são elogiadas:

(...) “É divino!” Mas nada o entusiasmava como o vinho de Tormes, caindo de alto, da bojuda infusa verde – um vinho fresco, esperto, seivoso, e tendo mais alma, entrando mais na alma, que muito poema ou livro santo. Mirando, à vela de sebo, o copo grosso que ele orlava de leve espuma rósea, o meu Príncipe, com um resplendor de otimismo na face, citou Virgílio:
-Quo te carmina dicam, Rethica? Quem dignamente te cantará, vinho amável destas serras? Quem dignamente te cantará, vinho amável destas serras?
Eu, que não gosto que me avantajem em saber clássico, espanejei logo também o meu Virgílio, louvando as doçuras da vida rural:
-Hanc olim veteres vitam coluere Sabini... Assim viveram os velhos Sabinos. Assim Rômulo e Remo... Assim cresceu a valente Etrúria. Assim Roma se tornou a maravilha do mundo!
E imóvel, com a mão agarrada à infusa, o Melchior arregalava para nós os olhos em infinito assombro e religiosa reverência. (...)


O fato de o protagonista de A Cidade e as Serras ler o poeta Virgílio no espaço rural de Tormes pode funcionar, sem dúvida, como um elemento para os que defendem que o romance exalta os valores nacionais, sobretudo na sua vertente de apologia à aurea mediocritas. Na verdade, no gozo dos doces ócios do campo (para usar uma expressão de Horácio, que aliás é referido no romance), era mais do que propício ler Virgílio, o bucolista por excelência da Literatura Latina, e que é citado quase por toda a literatura pastoril.
Maria Lúcia Lepecki entende que a leitura de Virgílio por Jacinto nas serras corrobora o seu estado de alienação. É que ele deforma a funcionalidade do objeto estético, porque para o senhor de Tormes as Bucólicas e as Geórgicas de Virgílio adquirem o valor informativo preponderante que ele deveria encontrar nos jornais de agricultura, onde a técnica para o cultivo do campo lhe seria verdadeiramente fornecida.
Virgílio desempenha nas serras a mesma fonte de autoridade que, na fase pessimista de Paris, desempenhavam as leituras auto-justificativas de Schopenhauer e do Ecclesiates.
É pertinente salientar ainda que Jacinto deixa de ler nas serras o científico e o filosófico, que lia no 202, e passa a ler unicamente o ficcional. Por isso, afirma Maria Lúcia na Ambiguidade que um dos constituintes reacionários da obra se prende com o fato de em Tormes Jacinto não ler um só texto contemporâneo. Nem sequer com a obra científica de Plínio, que encaixotara em Paris para ser lido em Tormes, poderia a personagem manter um diálogo atualizado relativamente ao objeto do conhecimento, que era o campo português do séc. XIX. Então, a volta à Serra é a volta ao passado.
Na obra, há, ainda, alusões ao Gargantua de Rabelais e ao D. Quixote , a que, aliás, o próprio Eça tão bem se referira em 1891 em A Decadência do Riso, Eça de Queirós compara o final do século XIX à Idade Média, na medida em que nestes dois momentos da História o homem se deixou dominar por teorias e por sistemas de pensamento, de tal forma opressivos, que lhe suprimiram o riso - aquilo que é tão próprio do homem. Na Idade Média a causa terá residido no poder absoluto da Igreja, simbolicamente expresso pela leva queirosiana como o morcego teocrático; no século XIX foi devido ao fanatismo com que se defenderam as novas teorias do homem e da ciência. Assim se compreende que Eça termine esta "nota contemporânea" da seguinte maneira:
O infeliz está votado ao bocejar infinito. E tem por única consolação que os jornais lhe chamem e que ele se chame a si próprio - o Grande Civilizado.
Estas palavras induzem a uma crítica vincada da parte do escritor, como pensa Orlando Grossegesse, ao Pessimismo (Schopenhauer) e que estava em moda na época, e que se refletem na caracterização de Jacinto em A Cidade e as Serras.
Depois de Jacinto ter dito a Zé Fernandes que tinha dormido naquele dia deliciosamente como um justo o narrador Zé Fernandes informa ao leitor que o seu ditoso amigo findava o D. Quixote e ele ainda lhe escutara as derradeiras risadas com as coisas deliciosas, e decerto profundas, que o gordo Sancho lhe murmurava, escarranchado no seu burro.
A leitura de D. Quixote a que Jacinto procede, depois de ter lido as Bucólicas de Virgílio (e antes de começar a ler a Odisseia de Homero) simboliza a recuperação da sua capacidade de rir, ao contrário da postura séria que tomava em Paris, fruto das suas leituras positivistas e pessimistas:

(...) Em breve, porém, me fez pular, escancarar as pálpebras moles, uma rija, larga, sadia e genuína risada. Era Jacinto estirado numa cadeira, que lia o D. Quixote... Oh bem-aventurado Príncipe! Conservara ele o agudo poder de arrancar teorias a uma espiga de milho ainda verde, e por uma clemência de Deus, que fizera reflorir o tronco seco, recuperara o dom divino de rir com as facécias de Sancho! (...)


4º Atítese:
António Sérgio, que, em vez da oposição Civilização-Natureza, afirma que a verdadeira antítese em que se esteia o livro é a antítese Ociocidade-Ocupação. E a prova disto é que chegado à Serra começou logo o Jacinto a ser ativo - e daí proveio o desvanecer-se o tédio, e daí a redenção da personagem.
Alexandre Pinheiro Torres apresenta uma interpretação muito semelhante à de António Sérgio, porque considera a cidade um lugar desagradável, onde é impossível praticar uma vida de plenitude humana; o campo, em contrapartida, é apresentado como sendo o lugar propício à renovação e à conquista de felicidade.

(... )quando me despertou um berro amigo! Era o meu Príncipe. E muito decididamente, depois de me soltar do seu rijo abraço, o comparei a uma planta estiolada, emurchecida na escuridão, entre tapetes e sedas, que, levada para o vento e o sol, profusamente regada, reverdece, desabrocha e honra a Natureza! Jacinto já não corcovava. Sobre a sua arrefecida palidez de supercivilizado, o ar montesino, ou vida mais verdadeira, espalhara um rubor trigueiro e quente de sangue renovado que o virilizava soberbamente. Dos olhos, que na Cidade andavam sempre tão crepusculares e desviados do Mundo, saltava agora um brilho de meio-dia, resoluto e largo, contente em se embeber na beleza das coisas. Até o bigode se lhe encrespara. E já não deslizava a mão desencantada sobre a face – mas batia com ela triunfalmente na coxa. Que sei? Era Jacinto novíssimo.
E quase me assustava, pôr eu Ter de aprender e penetrar, neste novo Príncipe, os modos e as idéias novas.
-Caramba, Jacinto, mas então...?
Ele encolheu jovialmente os ombros realargados. E só me soube contar, trilhando soberanamente com os sapatos brancos e cobertos de pó o soalho remendado, que, ao acordar em Tormes, depois de se lavar numa dorna, e de enfiar a minha roupa branca, se sentira de repente como desanuviado, desenvencilhado! Almoçara uma pratada de ovos com chouriço, sublime. Passeara pôr toda aquela magnificência da serra com pensamentos ligeiros de liberdade e de paz. Mandara ao Porto comprar uma cama, uns cabides... E ali estava...
(...)
-Ando aí pelas terras desde o romper de alva! Pesquei já hoje quatro trutas magníficas... Lá embaixo, no Naves, um riachote que se atira pelo vale de Seranda... temos logo ao jantar essas trutas!
Mas eu, ávido pela história daquela ressurreição:
-Então, não estiveste em Lisboa?... Eu telegrafei...
-Qual telégrafo! Qual Lisboa! Estive lá em cima, ao pé da fonte da Lira, à sombra duma grande árvore, sub tegmine não sei quê, a ler esse adorável Virgílio... e também a arranjar o meu palácio! Que te parece, Zé Fernandes? Em três semanas, tudo soalhado, envidraçado, caiado, encadeirado!... Trabalhou a freguesia inteira! Até eu pintei, com uma imensa brocha. Viste o comedouro?


Frank Sousa opina que:
Ao optar por personagens de índole tão diferente (citadina e francesa, com Jacinto; serrana e portuguesa, com Zé Fernandes), Eça põe em cena duas vozes, dois pontos de vista ideológicos que constantemente e de modos diversos dialogam entre si. É desta forma que o autor de A Cidade e as Serras problematiza a maneira de viver e as próprias soluções finais, que perante a vida adota (ou encontra) cada uma destas personagens.
Zé Fernandes é um pequeno proprietário, opondo-se assim implicitamente a Jacinto, o aristocrata rural que descende de fato de uma família com raízes remotas na Idade Média portuguesa. José Fernandes é o narrador deste livro, ele está, portanto, de certo modo, em cena durante todo ele. De sua informação nós sabemos assim que vive ou sempre viveu com os tios Vicência e Afonso Fernandes - sintomaticamente morto, aliás, logo no começo do livro.
Ora este Zé Fernandes é como se não tivesse tido pais. Porque nem uma única vez se refere à mãe e uma só vez faz uma referência ocasional a um “daguerreótipo do papá” (cap. VIII). Nada mais. Como se a sua filiação se não determinasse nos pais, mas justamente nos tios...
5º Antítese:

Um personagem típico da atmosfera decadentista é o dândi. Charles Baudelaire diz:
O homem rico, ocioso e que, mesmo entediado de tudo, não tem outra preocupação senão correr ao encalço da felicidade; o homem criado no luxo e acostumado a ser obedecido desde a juventude; aquele, enfim, cuja única profissão é a elegância, sempre exibirá, em todos os tempos, uma fisionomia distinta, completamente à parte. (BAUDELAIRE, 1996. p. 51)
Oriundo da aristocracia, “(...) o dândi não aspira ao dinheiro como a uma coisa essencial; um crédito ilimitado poderia lhe bastar: ele deixaria essa grosseira paixão aos vulgares mortais.” (Idem, ibidem) O dândi é politicamente anti-burguês, não porque quer acabar com a burguesia, mas porque é aristocrático.

(...) - Ó Jacinto, para que servem todos estes instrumentozinhos? Houve já aí um desavergonhado que me picou. Parecem perversos... São úteis?
Jacinto esboçou, com languidez, um gesto que os sublimava. -Providenciais, meu filho, absolutamente providenciais, pela simplificação que dão ao trabalho! Assim... e apontou. Este arrancava as penas velhas, o outro numerava rapidamente as ´páginas dum manuscrito; aqueloutro, além, raspava emendas... E ainda os havia para colar estampilhas, imprimir datas, derreter lacres, cintar documentos...
- Mas com efeito, acrescentou, é uma seca... Com as molas, com os bicos, às vezes magoam, ferem... Já me sucedeu inutilizar cartas pôr as Ter sujado com dedadas de sangue. É uma maçada! (...)


O flâneur é ser que observa o mundo que o cerca de maneira real e descritiva, levando a vida para cada lugar que vê. O flâneur descrever as cidades, as ruas, os becos, o externo. Desvincula-se do particular, recrimina o privado, de forma a ver a rua como lar, refúgio e abrigo. Este sentimento flaneuriano reflete a necessidade de segurança do indivíduo, a necessidade de identificação dele para com a sociedade. A rua é seu lar, seu mundo. Ali nada é estranho ou prejudicial. Na rua se sente confortável e protegido. O flâneur do século XIX representou a angústia da Revolução Industrial.
Mesmo que não habitante constante da rua, o indivíduo flâneur utiliza sua janela (caminho livre para o externo) para fazer sua observação e seu retrato. O flâneur é um fotógrafo. Porém além de imagens, ele registra idéias, sentimentos e atitudes. Descreve tudo com perfeição e carinho. Ama o mundo exterior e dele faz seu ideal profissional e emocional.

Arrastei então pôr Paris dias de imenso tédio. Ao longo do Boulevard revi nas vitrinas todo o luxo, que já me enfartara havia cinco anos, sem uma graça nova, uma curta frescura de invenção. Nas livrarias, sem descobrir um livro, folheava centenas de volumes amarelos, onde, de cada página que ao acaso abria, se exalava um cheiro morno de alcova, e de pós-de-arroz, entre linhas trabalhadas com efeminado arrebique, como rendas de camisas. (...) E recolhia enjoado com tanto relento de alcova, vagamente dispéptico com os molhos de pomada do jantar, e sobretudo descontente comigo, pôr me não divertir, não compreender a Cidade, e errar através dela e da sua Civilização Superior, com a reserva ridícula dum Censor, dum Catão austero. Ó senhores! – pensava – pois eu não me divertirei nesta deliciosa cidade? Entrará comigo o bolor da velhice?





















Referências bibliográficas:

QUEIROZ, Eça de, A Cidade e as Serras, Lisboa, Livros do Brasil, s/d.
COELHO, Jacinto do Prado - "A tese de 'A Cidade e as Serras'" in A letra e o leitor, 2ª ed., Lisboa Moraes Editores, 1977, pp. 169-174.
LEPECKI, Maria Lúcia - " O sentido de A Cidade e as Serras" in Eça na ambiguidade, Fundão, "Jornal do Fundão" Editora, 1974, pp.
SOUSA, Frank S. - "Da errância como atitude estética em Eça de Queiroz: do conto A Perfeição aA Cidade e as Serras ", Revista da Faculdade de Letras, 5ª série, 19/20, Lisboa, 1995-1996, pp. 75-88.
SOUSA, Frank S. - O segredo de Eça. Ideologia e ambiguidade em "A Cidade e as Serras", Lisboa, Cosmos, 1996
GUERRA DA CAL, Ernesto, Língua e Estilo de Eça de Queiroz, Coimbra, Almedina, 1981.
MEDINA, João, Eça Político, Lisboa, Seara Nova, 1974.
GROSSEGESSE, Orlando, «Sobre a 'recarnavalização' em A Cidade e as Serras
______. “A postura (anti-)dândi e a noção de decadência no conto Civilização, de Eça de Queirós
Michele Dull Sampaio Beraldo Matter. In: O MARRARE – Revista da Pós-Graduação em Literatura Portuguesa da UERJ. Rio
de Janeiro: 2007a. n. 8. p. 8-19.
BAUDELAIRE, Charles. O dândi. In: Sobre a modernidade: o pintor da vida moderna. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. pp. 51-56.

QUEIRÓS, Eça de. A decadência do riso. In: Notas contemporâneas. Lisboa: Edição Livros do Brasil, s/d.
______. Civilização. Contos. São Paulo: Martim Claret, 2004.

Um olhar atento para Capitu

por Fabiano Fernandes Garcez















Dom Casmurro não é um livro, mas muitos, nos leva a inúmeras e diferentes leituras.

O livro é um julgamento, a ré, Capitu, Bentinho, o promotor.
Augusto Meyer


É uma história banal

Bentinho, filho de um já falecido fazendeiro e deputado, se vê na possibilidade de ter de cumprir a promessa que sua mãe, D. Glória, fizera quando de seu nascimento: Torná-lo padre.
O menino percebe que isso o separaria de sua “primeira amiga” a menina Capitu, filha de um funcionário público, o Pádua, seu vizinho. Após longa sucessão de artimanhas para libertá-lo da promessa, Bentinho e Capitu casam-se, mas não permanecem unidos por muito tempo.
O ciúme leva-os a separação. O casal finge uma viagem à Europa e lá ficam Capitu e seu filho Ezequiel, porém este regressa já moço, para uma breve visita ao pai, já velho, que o recebe friamente. Pouco tempo depois, o rapaz parte para o estrangeiro para os estudos e lá acaba morrendo.

A estruturação da obra:

O romance pode ser dividido em duas partes

1º Parte (Capítulo 3 ao 97)

O texto segue o padrão romântico de superação dos obstáculos da união conjugal.
Sem ordem temporal rígida e com interrupções digressivas, começa com o problema central: A promessa da mãe em fazê-lo padre.

2º parte (Capítulo 98 ao 146)

O casamento, o nascimento do filho e as suspeitas sobre a infidelidade de Capitu e a morte de Escobar.
É a desmontagem da primeira parte, nas medidas em que psicologicamente pessimista que aos poucos toma por inteiro o narrador, obscurece completamente a inocência da juventude.

Aqui devia ser o meio do livro, mas a inexperiência fez-me ir atrás da pena, e chego quase ao fim do papel, com o melhor da narração por dizer. Agora não há mais que levá-la a grandes pernadas, capítulo sobre capítulo, pousa emenda, pouca reflexão, tudo em resumo. Já esta página vale por meses, outras valerão por anos, e assim chegaremos ao fim.
Cap. XCVII



O romance assume um caráter metalingüístico, após sua conclusão, então toda a primeira parte torna-se outra. Percebe-se que a construção intencional de Capitu é uma armadilha. Algumas características dela apresentadas nesta primeira parte sustentam a tese seria capaz de trair.

A narração

Não é a história contada que faz de D. Casmurro um grande livro da literatura mundial. O modo de contar é o mais importante.
O narrador em primeira pessoa conta a sua versão da história, atribuindo valores e significados a tudo e a todos e o leitor deve perceber isso se quer compreender o texto.


Um mundo que se mostra por dentro e se esconde por fora.
Carlos Franco


Em Machado o fato em si não tem a importância menor. O que interessa é a reflexão que esse fato provoca.

Eu gosto de catar o mínimo e o escondido. Onde ninguém mete o nariz, aí entra o meu, com a curiosidade estreita e aguda que descobre o encoberto.
Machado de Assis


A percepção do real dá importância significativa ao foco narrativo, assumindo o que se conta à condição psicológica de quem conta

Características marcantes da narração:

 Conversa com o leitor, bem humorada, geralmente;

 O narrador se expõe, para deixar bem claro que o fato narrado é ficção, não se esconde para dar a impressão de que narra um fato real;

 Ironia;

 Estudo da Alma feminina.


Em Machado o homem aparece como um ser corrompido e sem saída diante das forças de seu destino. Compara a vida a um espetáculo tedioso.

O destino não é só dramaturgo, é também o seu próprio contra-regra, isto é, designa a entrada dos personagens em cena, dá-lhes as cartas e outros objetos, e executa dentro os sinais correspondentes ao diálogo, uma trovoada, um carro, um tiro.
Cap. LXXIII



O indivíduo se defronta com o que socialmente se espera dele.

Bento Santiago é atrelado às convicções machistas e preconceituosas, um típico homem de seu tempo.


Tudo isto me era agora apresentado pela boca de José Dias, que me denunciara a mim mesmo, e a quem eu perdoava tudo, o mal que dissera o mal que fizera, e o que pudesse vir de um e de outro.
Cap. XII


Digressão Machadiana

Técnica utilizada que interrompe o fluxo narrativo e desloca o assunto de que se trata para atenuar, pelo humor implícito, a importância e a gravidade da narração, mas também lembra-nos de que tudo o que se narra é fruto das recordações e está sujeito ao fluxo de consciente do narrador.

A técnica Machadiana consiste em:
Sugerir as coisas mais tremendas da maneira mais cândida. Em estabelecer um contraste entre a normalidade social dos fatos e sua anormalidade essencial. Em sugerir, sob a aparência do contrário, que o ato excepcional é normal, e anormal seria o ato corriqueiro.
Antonio Candido



Fiquei tão alegre com esta idéia, que ainda agora me treme a pena na mão. Sim, Nero, Augusto, Massinissa, e tu, grande César, que me incitas a fazer os meus comentários, agradeço-vos o conselho, e vou deitar ao papel as reminiscências que me vierem vindos. Deste modo, viverei o que vivi, e assentarei a mão para alguma obra de maior tomo. Eia, comecemos a evocação por uma célebre tarde de novembro, que nunca me esqueceu. Tive outras muitas, melhores, e piores, mas aquela nunca se me apagou do espírito. É o que vais entender, lendo.
Cap. II



O narrador central é modificado pelo tempo

Percebemos a modificação do personagem através de nome:

Bentinho, Bento Santiago e Dom Casmurro

O nome do personagem retrate como ele é visto, é sua caracterização psicológica e social.

Como o narrador é um personagem toda a narrativa está condicionada a sua visão dos fatos. Dom Casmurro volta seu olhar para Bentinho e Bento Santiago.

Os olhos com que me disse isto eram embuçados, como espreitando um gesto de recusa ou de espera. Contava com a minha debilidade ou com a própria incerteza em que eu podia estar da paternidade do outro, mas falhou tudo. Acaso haveria em mim um homem novo, um que aparecia agora, desde que impressões novas e fortes o descobriam? Nesse caso era um homem apenas encoberto.
Cap. CXL


O livro inicia-se pelos capítulos Do título e Do livro que situam o leitor sobre o ponto de vista que estará em toda a narrativa.

Ora, como tudo cansa, esta monotonia acabou por exaurir-me também. Quis variar, e lembrou-me escrever um livro. Jurisprudência. Filosofia e política acudiram-me, mas não me acudiram as forças necessárias. Depois, pensei em fazer uma "História dos Subúrbios" menos seca que as memórias do Padre Luís Gonçalves dos Santos relativas à cidade; era obra modesta, mas exigia documentos e datas como preliminares, tudo árido e longo. Foi então que os bustos pintados nas paredes entraram a falar-me e a dizer-me que, uma vez que eles não alcançavam reconstituir-me os tempos idos, pegasse da pena e contassem alguns. Talvez a narração me desse a ilusão, e as sombras viessem
perpassar ligeiras, como ao poeta, não o do trem, mas o do Fausto: Aí vindes outra vez, inquietas sombras?...
Cap. II


O romance é parte de alguém que a certa altura da vida, limitou se ao direcionar toda sua energia vital em seu mundo interno.
O fato de reproduzir na velhice a casa de sua infância serve para caracterizar o personagem narrador.

(..) se o rosto é igual, a fisionomia é diferente.
Cap. II



Ora, há só um modo de escrever a própria essência, é contá-la toda, o bem e o mal. Tal faço eu, à medida que me vai lembrando e convidando à construção ou reconstrução de mim mesmo. Por exemplo, agora que contei um pecado, diria com muito gosto alguma bela ação contemporânea, se me lembrasse, mas não me lembra; fica transferida a melhor oportunidade.
Cap. LXVIII



Caracterizando Capitu


Todo eu era olhos e coração, um coração que desta vez ia sair, com certeza, pela boca fora. Não podia tirar os olhos daquela criatura de quatorze anos, alta, forte e cheia, apertada em um vestido de chita, meio desbotado. Os cabelos grossos, feitos em duas tranças, com as pontas atadas uma à outra, à moda do tempo, desciam-lhe pelas costas. Morena, olhos claros e grandes, nariz reto e comprido, tinha a boca fina e o queixo largo. As mãos, a despeito de alguns ofícios rudes, eram curadas com amor, não cheiravam a sabões finos nem águas de toucador, mas com água do poço e sabão comum trazia-as sem mácula. Calçava sapatos de duraque, rasos e velhos, a que ela mesma dera alguns pontos.
Cap. XIII


Capitu se mostra uma mulher fora de seu tempo, é uma mulher moderna em pleno século 19.


Esta imagem é porventura melhor que a outra, mas a ótima delas é nenhuma.
Capitu era Capitu, isto é, uma criatura mui particular, mais mulher do que eu era homem. Se ainda o não disse, aí fica. Se disse, fica também. Há conceitos que se devem incutir na alma do leitor, à força de repetição.
Era também mais curiosa. As curiosidades de Capitu dão para um Capítulo. Eram de vária espécie, explicáveis e inexplicáveis, assim úteis como inúteis, umas graves, outras frívolas; gostava de saber tudo. No colégio onde, desde os sete anos, aprendera a ler, escrever e contar, francês, doutrina e obras de agulha, não aprendeu, por exemplo, a fazer renda- por isso mesmo, quis que prima Justina lhe ensinasse. Se não estudou latim com o Padre Cabral foi porque o padre, depois de lhe propor gracejando, acabou dizendo que latim não era língua de meninas.
Cap. XXXI


Na 1º parte a linha narrativa pinta Capitu como uma jovem racional, ativa e calculista que facilmente sai de situações complicadas e é obstinada. Ela tem apenas 14 anos, mas já tem larga experiência. Tinha o trabalho de pensar por Bentinho, ele a obedecia e era manipulado de forma pacífica.

Todas as minhas invejas foram com ela. Como era possível que Capitu se governasse tão facilmente e eu não?
Cap. LXXXIII


— E você, Capitu, interrompeu minha mãe voltando-se para a filha do Pádua que estava na sala, com ela, — Você não acha que o nosso Bentinho dará um bom padre?
— Acho que sim, senhora, respondeu Capitu cheia de convicção.
Não gostei da convicção. Assim lhe disse, na manhã seguinte, no quintal dela, recordando as palavras da véspera, e lançando-lhe em rosto, pela primeira vez, a alegria que ela mostrara desde a minha entrada no seminário, quando eu vivia curtido de saudades. Capitu fez-se muito séria, e perguntou-me como é que queria que se portasse, uma vez que suspeitavam de nós; também tivera noites desconsoladas, e os dias, em casa dela, foram tão tristes como os meus; podia indagá-lo do pai e da mãe. A mãe chegou a dizer-lhe, por palavras encobertas, que não pensasse mais em mim.
Cap. LXV

O narrador faz um retrato psicológico de si mesmo: vacilante, emotivo, passivo, imaginativo e fraco.

As suspeitas

A tendência imaginativa é fundamental para a possibilidade de engano do narrador.

A imaginação foi a companheira de toda a minha existência, viva, rápida, inquieta, alguma vez tímida e amiga de empacar, as mais delas capaz de engolir campanhas e campanhas, correndo
Cap. XL


As suspeitas começam a surgir por causa, novamente, de José Dias, porém lá Bentinho não alimenta esse ciúme.

—Tem andado alegre, como sempre; é uma tontinha. Aquilo enquanto não pegar algum peralta da vizinhança, que case com ela...
Estou que empalideci; pelo menos, senti correr um frio pelo corpo todo. A notícia de que ela vivia alegre, quando eu chorava todas as noites, produziu-me aquele efeito, acompanhado de um bater de coração, tão violento, que ainda agora cuido ouvi-lo. Há alguma exageração nisto; mas o discurso humano é assim mesmo, um composto de partes excessivas e partes diminutas, que se compensam, ajustando-se. Por outro lado, se entendermos que a audiência aqui não é das orelhas, senão da memória, chegaremos à exata verdade.
Cap. LXII


Bentinho sente-se atraído por Sancha e vê a possibilidade de Capitu sentir o mesmo por Escobar .



Sancha ergueu a cabeça e olhou para mim com tanto prazer que eu, graças às relações dela e Capitu, não se me daria beijá-la na testa. Entretanto, os olhos de Sancha não convidavam a expansões fraternais, pareciam quentes e intimativos, diziam outra cousa, e não tardou que se afastassem da janela, onde eu fiquei olhando para o mar, pensativo. A noite era clara.
Dali mesmo busquei os olhos de Sancha, ao pé do piano; encontrei-os em caminho. Pararam os quatro e ficaram diante uns dos outros, uns esperando que os outros passassem, mas nenhum passavam. Tal se dá na rua entre dous teimosos. A cautela desligou-nos eu tornei a voltar-me para fora. E assim posto entrei a cavar na memória se alguma vez olhara para ela com a mesma expressão, e fiquei incerto. Tive uma certeza só, é que um dia pensei nela, como se pensa na bela desconhecida que passa; mas então dar-se-ia que ela adivinhando... Talvez o simples pensamento me transluzisse cá fora, e ela me fugisse outrora irritada ou acanhada, e agora por um movimento invencível... Invencível; esta palavra foi como uma bênção de padre à missa, que a gente recebe e repete em si mesma.
Cap. CXVIII


Olhos de Ressaca

Toda a caracterização de Capitu parece fazer parte de um projeto narrativo proposital e interligado.

Reforça-se pela construção de Capitu por José Dias —“olhos de cigana oblíqua e dissimulada” —, que será reafirmado mais tarde pelo próprio Bento fazendo referências do caráter enigmático e sedutor dos olhos de Capitu: olhos de ressaca.


Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade do estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá idéia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros, mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me.
Cap. XXXII


De repente, cessando a reflexão, fitou em mim os olhos de ressaca, e perguntou-me se tinha medo.
— Medo?
— Sim, pergunto se você tem medo.
— Medo de quê?
— Medo de apanhar, de ser preso, de brigar, de andar, de trabalhar...
Cap. XLIII



Agora, por que é que nenhuma dessas caprichosas me fez esquecer a primeira amada do meu coração? Talvez porque nenhuma tinha os olhos de ressaca, nem os de cigana oblíqua e dissimulada. Mas não é este propriamente o resto do livro. O resto é saber se a Capitu da Praia da
Glória já estava dentro da de Mata-cavalos, ou se esta foi mudada naquela por efeito de algum caso incidente. Jesus, filho de Sirach, se soubesse dos meus primeiros ciúmes, dir-me-ia, como no seu cap. IX, vers. 1: "Não tenhas ciúmes de tua mulher para que ela não se meta a enganar-te com a malícia que aprender de ti". Mas eu creio que não, e tu concordarás comigo; se te lembras bem da Capitu menina, hás de reconhecer que uma estava dentro da outra, como a fruta dentro da casca.
Cap. CXLVIII


O ciúme doentinho

O romance centra-se em perceber os processos de construção da suspeita de Bento.

Onde há fumaça há fogo

(...) o fato é que, dentro do universo machadiano, não importa muito que a convicção de Bento seja falsa ou verdadeira, porque a conseqüência é exatamente a mesma nos dois casos.
Antonio Candido



Um dos costumes da minha vida foi sempre concordar com a opinião provável do meu interlocutor, desde que a matéria não me agrava, aborrece ou impõe. Antes de examinar se efetivamente Capitu era parecida com o retrato, fui respondendo que sim. Então ele disse que era o retrato da mulher dele, e que as pessoas que a conheceram diziam a mesma cousa. Também achava que as feições eram semelhantes, a testa principalmente e os olhos. Quanto ao gênio, era um, pareciam irmãs.
— Finalmente, até a amizade que ela tem a Sanchinha — a mãe não era mais amiga dela... Na vida há dessas semelhanças assim esquisitas.
Cap. LXXXIII


Capitu estava melhor e até boa. Confessou-me que apenas tivera uma dor de cabeça de nada, mas agravara o padecimento para que eu fosse divertir-me. Não falava alegre, o que me fez desconfiar que mentia, para me não meter medo, mas jurou que era a verdade pura. Escobar sorriu e disse:
—A cunhadinha está tão doente como você ou eu. Vamos aos embargos.
Cap. CXIII


Quis observar-lhe que tal razão explicava a interrupção das visitas, e não a frieza quando íamos nós a Mata-cavalos; mas não estendi tão longe a intimidade do agregado. José Dias pediu para ver o nosso "profetazinho" (assim chamava a Ezequiel) e fez-lhe as festas do costume. Desta vez falou ao
modo bíblico (estivera na véspera a folhear o livro de Ezequiel, como soube depois) e perguntava-lhe:
"Como vai isso, filho do homem?" "Dize-me, filho do homem, onde estão os teus brinquedos?"
"Queres comer doce, filho do homem?"
— Que filho do homem é esse? perguntou-lhe Capitu agastada.
— São os modos de dizer da Bíblia.
— Pois eu não gosto deles, replicou ela com aspereza.
— Tem razão, Capitu, concordou o agregado. Você não imagina como a Bíblia é cheia de expressões cruas e grosseiras. Eu falava assim para variar... Tu como vais, meu anjo? Meu anjo, como é que eu ando na rua?
Cap. CXVI


— Mas tem muita graça; a mim, quando ele copia os meus gestos, parece-me que sou eu mesmo, pequenino. Outro dia chegou a fazer um gesto de D. Glória, tão bem que ela lhe deu um beijo em paga. Vamos, como é que eu ando?
— Não, Ezequiel, disse eu, mamãe não quer.
Eu mesmo achava feio tal sestro. Alguns dos gestos já lhe iam ficando mais repetidos, como os das mãos e pés de Escobar, ultimamente, até apanhara o modo de voltar a cabeça deste, quando falava, e o de deixá-la cair, quando ria. Capitu ralhava. Mas o menino era travesso, como o diabo; apenas começamos a falar de outra cousa, saltou ao meio da sala, dizendo a José Dias:
— O senhor anda assim.
Não podemos deixar de rir, eu mais que ninguém. A primeira pessoa que fechou a cara, que o repreendeu e chamou a si foi Capitu.
— Não quero isso, ouviu?
Cap. CXVI


Otelo
O narrador afirma que nunca leu nem viu Otelo, porém a peça de Shakespeare foi assunto do cap. LXXII – Uma ponta de Iago.
Um lenço foi suficiente para que Otelo tenha certeza do crime de Desdemona, um olhar foi que trouxe a Bento a certeza. Porém mesmo sabendo que Desdemona é inocente Bento não sente pena por ela.
E não podemos esquecer que:

A imaginação foi a companheira de toda a minha existência, viva, rápida, inquieta, alguma vez tímida e amiga de empacar, as mais delas capaz de engolir campanhas e campanhas, correndo. Creio haver lido em Tácito que as éguas iberas concebiam pelo vento, se não foi nele, foi noutro autor antigo, que entendeu guardar essa crendice nos seus livros. Neste particular, a minha imaginação era uma grande égua ibera; a menor brisa lhe dava um potro, que saía logo cavalo de Alexandre; mas deixemos metáforas atrevidas e impróprias dos meus quinze anos. Digamos o caso simplesmente. A fantasia daquela hora foi confessar a minha mãe os meus amores para lhe dizer que não tinha vocação eclesiástica.
Cap. XL






Referências bibliográficas:
CANDIDO, Antonio. O Discurso e a Cidade. São Paulo: Duas Cidades, 1993.
CARVALHO, Luiz Fernando (org). Capitu: minissérie de Luiz Fernando Carvalho a partir da obra Dom Casmurro, de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2008.
COSTA LIMA, Luiz. Pensando nos trópicos. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.
MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria (1899). Dom Casmurro. Fixação de texto e notas de Manoel Mourivaldo Santiago Almeida; prefácio de John Gledson. São Paulo: Globo, 2008.
____ (1899). Dom Casmurro. Biografia de M. Cavalcanti Proença; estudo introdutório e notas de Afrânio Coutinho; introdução de Ivan Cavalcanti Proença. Rio de Janeiro: Ediouro, sd.
ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo: Scipione,1994.
ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. 12. ed. São Paulo: Ática, 1981.
ASSIS, Machado. Dom Casmurro. Klick Editora para o jornal O Estado de São Paulo, 1997.